Abro parênteses
na série “Livros que não são o que parecem” para tratar de um que não é
religioso. Nesse caso, é um livro que parece ser bom – por estar no topo dos
mais vendidos de ficção – mas é uma porcaria. Eu achei que não precisasse
resenhar Cinquenta Tons de Cinza (Fifty Shades of Grey). Para mim, todo mundo
já sabia do que se tratava: um romance sem valor literário, com cenas de sexo
sadomasoquista. Mas nem todo mundo sabe. Tenho recebido perguntas a respeito e
fiquei preocupada. Achei melhor escrever uma resenha. Caso alguém lhe pergunte,
você também saberá o que dizer.
O livro é ruim.
Sob diversos aspectos. Cenas arrastadas, construção pobre, a personagem passa
muito tempo com os mesmos questionamentos e frases repetidas, o que o torna
cansativo. A linguagem às vezes é muito forçada…A autora cria diálogos dignos
dos piores livros de banca de jornal. O problema não é um livro ter cenas de
sexo, porque é como os filmes, se formos deletar todos os que têm cenas fortes,
ficaríamos com pouquíssimas opções de entretenimento. Mas as cenas de sexo de
Cinquenta tons de cinza vêm em uma quantidade excessiva e descontextualizada e
são descritivas demais, algumas beirando o ridículo. Coisas como (um trecho
neutro, of course. Temos menores de idade aqui):
”Com um
movimento suave, ele ajeita o seu corpo, de modo que, o meu torso está
descansando na cama ao lado dele. Ele joga a perna direita sobre as minhas duas
pernas e bota o seu antebraço esquerdo na parte de baixo das minhas costas,
segurando-me para baixo, assim eu não posso me mover.”
Amigos, eu não
sei se o problema é comigo, mas eu não sou muito visual. Eu simplesmente não
consigo visualizar isso e em minha cabeça, na terceira frase, os dois já estão
embolados em um perfeito nó, como se fossem dois polvos enroscados, jogando
batalha naval, sem o menor romance.
Mas esse não é o
problema.
Acho
impressionante como no século 21, em que falar de “submissão” em termos
bíblicos causa espanto e horror, um livro que trate de submissão em termos
degradantes faça tanto sucesso. Quero dizer, uma submissão que valorize a
mulher é descartada à primeira menção, mas uma “submissão” que a desvalorize e
a transforme em mero objeto é fascinante? Isso faz algum sentido?
A mulher tem uma
necessidade natural de se sentir segura, amada, cuidada, protegida…tem a
necessidade natural da submissão saudável a um homem que lhe dê essa segurança.
A sociedade aboliu a submissão saudável, mas não consegue tirar da mulher a
necessidade de segurança…sendo assim, a submissão distorcida e doentia encontra
espaço suficiente para instalar…e essas distorções tornam-se normais,
aceitáveis e até desejáveis!
Christian Grey é
um homem lindo e rico. Anastasia Steele é universitária e inexperiente.
Eles se apaixonam e ela descobre que ele é um dominador sádico e quer
iniciá-la. Se fosse apenas isso, talvez o livro não fizesse tanto
sucesso. Ele teve uma infância difícil, maltratado pela mãe biológica,
adotado aos quatro anos, foi abusado aos 15 anos por uma amiga casada da
mãe adotiva. Essa amiga lhe apresentou o sadomasoquismo, e esse foi o único
tipo de relacionamento que ele conheceu. Anastasia quer ajudá-lo. Não é amor –
não o amor verdadeiro – mas um punhado de emoções e sensações que mexe com a
cabeça das leitoras carentes e as prepara para aceitar relacionamentos doentios
com homens desajustados.
Há uma
necessidade de confiança entre os dois, para que ela se entregue totalmente a
ele. Um relacionamento baseado em confiança e entrega…não é tudo o que as
mulheres querem? Ele abre a porta do carro, se preocupa com sua segurança, está
sempre pronto a protegê-la, a cuidar dela, lhe dá 100% de atenção e se preocupa
em satisfazê-la…preenchendo todas as necessidades que as “mulheres modernas”
têm desprezado…Só tem um “detalhe”: ele a oprime, a persegue e tem prazer em
bater nela! E ela se tornou sua escrava.
Vê o tamanho do
problema? O quanto é perigoso para a cabeça de mulheres carentes? Percebe o
tamanho do perigo de romantizar um relacionamento doentio? De ver isso
como normal? Ao aceitar um relacionamento abusivo, você se priva de conhecer o
verdadeiro amor e tudo de maravilhoso que ele traz…o amor faz o bem ao outro,
não o mal. Em questões comportamentais, principalmente quando se trata de
relacionamentos, obras de ficção têm, sim, um grande impacto. Pode apostar que
muitas mulheres flexibilizarão seus limites por terem visto algo de “bonito” e
“excitante” no relacionamento de Anastasia e Christian Grey.
Anastasia
submete-se ao mais degradante, para não perder Christian. E tenta compreender o
incompreensível, dizendo que ele sofre, se esconde em suas sombras… Desculpe, mas
depois de conhecer as histórias reais das mulheres no Projeto Raabe, eu não
consigo ver nenhum lirismo nisso. Isso não é submissão. Isso não é bonito.
Anastasia não está feliz com o relacionamento, sente-se usada, sente-se mal,
sente-se culpada e há um esforço por parte dele em tentar fazer com que ela se
livre do sentimento de culpa. E a autora mostra tudo como se fosse lindo, como
se fosse amor, como se fosse legal e prazeroso.
“Não
desperdice sua energia em culpa, sentimentos de injustiça, etc. Nós somos
adultos responsáveis e o que nós fazemos a portas fechadas está entre nós. Você
precisa liberar a sua mente e escutar o seu corpo.”
Isso é uma
tremenda enganação. Vai acreditando que “liberar sua mente e escutar o seu
corpo”, fazendo qualquer coisa, não terá consequências. Sim, somos adultos, e
por isso mesmo devemos pensar, e não agir por instinto, por emoção, não devemos
nos guiar por sensações e por nossa mera vontade…se começarmos a agir assim – e
é o que o mundo nos cobra – nos transformaremos em seres bestiais. Parece um
quadro digno de ser pintado pelo diabo.
E eu vejo nisso
o que a sociedade em geral tenta nos empurrar goela abaixo:
“ Siga o seu coração, querida, e por favor, por favor, tente não
pensar demais sobre as coisas. Relaxe e aproveite. Você é tão jovem querida,
você tem tanto para experimentar, apenas deixe acontecer.”
Amiga, faça isso
e se encrenque pelo resto da eternidade. Me parece a própria voz do diabo,
dando a receita para um futuro infeliz. Sim, siga o seu coração, não pense,
relaxe e aproveite. E estatele-se ao cair do precipício. Sim, porque é para lá
que o “siga seu coração e não pense” nos leva, pode crer. Mas Hollywood e toda
a conspiração do entretenimento emburrecedor insiste nessa tecla infinitamente.
O livro
ilude e tenta romantizar o que na vida real não tem absolutamente nada de
romântico. E eu me pego pensando que já temos porcarias demais no mercado
literário e na cabeça das pessoas para que precisemos desse tipo de coisa. São
mais de quatrocentas páginas, amigos. Quatrocentas e oitenta páginas do seu
tempo, que não voltam mais. Tenho certeza de que você tem coisa mais importante
para ler em 480 páginas. Se tiver bom senso, passe longe desse livro. É o
melhor conselho que posso dar.
Agora temos uma
porção de garotinhas (e mulheres mais velhas também, por incrível que pareça)
suspirando pelo fictício Christian Grey, sonhando com chicotes,
espancamentos e sessões de sexo selvagem e vazio descritas como danças de
polvos malucos que uma hora estão de pé, em outra estão de cabeça para baixo
(já disse que simplesmente não consigo visualizar descrições longas). E eu
prefiro nem pensar no que pior esse mundo ainda pode inventar, como novo
“fenômeno literário”.
Quer ler todas as
resenhas? Clique aqui.
PS: Falando em “coisas melhores para ler”, me
lembrei de um livro (que muitos de vocês sabem que é um de meus preferidos) que
fala de amor de verdade e é extremamente bem escrito. Se você ainda não leu o
“Amor de Redenção”, dê uma lida na resenha, clique aqui para ler.
Ótima Resenha!!
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